O espectador suspenso

Isidoro Valcárcel Medina1

Quando se inicia uma dissertação sobre o tema do espectador no mundo da arte é preciso fazer, em meu caso, uma advertência de importância capital: esse espectador somente existe porque esse mundo da criatividade é mal formado. Quero dizer com isso que não deveria existir um contemplador não autor, ambos rigorosamente considerados. É a estrutura cultural deformada que permite o sem sentido de um homem que se limita a olhar o que outros fazem. Se admitimos, como parece inevitável, esta última frase como uma definição de espectador – aquele que se contenta em ver o que é produzido fora do seu espaço –, não é possível evitar a evidência de que uma tal passividade não é humana, de que semelhante indolência criativa é algo contrário à essência mesma da natureza do homem.

Cientes desse desequilíbrio (criador-contemplador, emissor-receptor, autor-espectador… ou como quisermos chamá-lo), as boas almas protetoras do edifício cultural cunharam o slogan de que uma obra de arte não se completa até que alguém de fora a contemple…; ou, ainda, de que cada espectador só vê a obra à qual deu o toque final de sua interpretação pessoal… Ambas coisas se resumem no grande encontro da condescendência: existem tantas obras, quanto contempladores. Então, vou falar do espectador da arte (e também da arte, mesmo), mas previamente deixando claro que vou usar uma enteléquia2, uma falsidade: a arte é necessariamente ação! E só ação.

Dito de outro modo: não é possível ser espectador de uma coisa chamada arte, porque essa coisa, quando se encontra em condições de ser contemplada, morreu. O espectador da arte é, como consequência, não apenas quem se deleita com um cadáver, senão, em uma aplicação sensata de uma lógica inquestionável, ele mesmo é cadáver, ou, pior ainda, um indivíduo com aspirações escatológicas.

E agora, depois de pedir que me permitam deixar de lado a condição também expectativa dos artistas, não posso economizar umas palavras para eles, que estão muito contentes em ter uma abundância de espectadores (de fato, se queixam de não ser ainda maior o interesse pela arte) que lhes permite ser minoria, escandalosa, sim, com o consolo que ser caolho em um país de cegos. Os [que são] criadores por profissão não poderiam suportar a falta de observadores da sua ocupação pessoal… são considerados parte essencial de seu trabalho… É por isso que, muitas vezes protestam sobre a autonomia da atividade artística, à qual consideram acima do bem e do mal.

E ainda há outra propriedade à qual seria injusto não dar, por minha parte, sua porção crítica. Falo do poder em geral; isto é, daqueles organismos ou instituições que, agora mais que nunca, têm descoberto a conveniência de ter muitos espectadores (pediria a meus ouvintes que não passem desatentamente pelo sentido dessa frase).

Oficialmente, hoje a arte já é uma matéria de contemplação. Poderia dizer que tem conseguido que o alvoroço dos espectadores constitua uma força real no mercado, seja este político ou econômico.

É assim que me vejo no transe de falar de algo que é falso por princípio…; de umas pessoas que são um simulacro de sua própria natureza…; de uma estrutura que se mantém à custa de deturpar a própria ideia de criatividade (ideia que é equivalente à da arte e que pode ser assimilada à ação) …

E como disse que a arte é, inevitavelmente, ação, o espectador acaba sendo um ser fictício que permanece sentado enquanto se move.

Ou acaso sua missão é frear a efervescência da arte; dar, em uma palavra, por terminada a obra? Vou procurar falar de tudo isso, mas há que lembrar ao ouvinte que ele, se ama de verdade a arte (essa conversa é arte, sem dúvida!), não deveria me escutar, não deveria ser espectador.

[…]

Costumo dizer (e costumam argumentar comigo) que uma obra de arte só é tal quando gera outras obras de arte…, as quais, acrescento agora, têm de surgir, claro, dos espectadores (neste caso, como disse, eles não o seriam). Pois bem, se algo disso é mais ou menos aceitável, o espectador desfruta de um papel protagonista – se é que cumpre seu papel – ou permanece na mais estéril das nebulosas – se é que se contenta em olhar.

Os que me seguem compreenderão que falar de forma séria e sensata desse personagem descomprometido é algo um pouco incômodo e totalmente gratuito. No entanto, o mundo é dos espectadores, não só porque são muitos mais, mas também porque, pensando em seu duplo aspecto quantitativo e qualitativo, o autor cria para eles – a seu gosto, poderia dizer-se – o produto do êxito esperado.

Assim, contradizendo minhas afirmativas anteriores, o espectador “existe muito”, é muito visível e é muito influente. Mais ainda, e contra o que a tradição ensina, o espectador de arte tem mais domínio sobre o produto que consome do que é normal em outros campos da cultura e da indústria; ou, para dizê-lo de forma mais resumida e precisa, da indústria da cultura.

Não é certo, pois, atualmente, que o artista seja um criador a cujas decisões o amante da arte tenha que se adaptar… Isso ocorre poucas vezes (ainda que essas vezes sejam as únicas que merecem atenção). Estou chegando a um ponto onde poderia dispensar o tema desta intervenção dizendo que a distância arte-espectador é mais curta que nunca, ainda que os divulgadores da cultura interessada digam o contrário.

Os artistas do momento fazem o que o espectador solicita deles, incluindo aquilo que, aparentemente, irrita o próprio espectador. Tenho para mim que o criador que mantém à distância os seguidores (até os respeitando, justamente por isso, como ninguém!) é o que diz a eles (atenção: diz a eles) as coisas mais simples com as palavras mais claras.

A esse respeito, me ocorre um exemplo chocante: quem lê as críticas de arte – o espectador de críticas, por assim dizer – o que espera não é entendê-las e o que lhe desanima é ver claramente o que dizem. Sua expectativa é que todos os personagens citados nos textos críticos lhe sejam desconhecidos e seus juízos, enigmáticos. Sua maior decepção vem, ao contrário, quando esbarra em alguém que fala por si mesmo; isto é, com alguém tão “inculto” como ele.

O espectador da arte está muito perto do artista automático e bem educado, do artista que faz uma obra incompreensível para seus entendidos. Mas é lógico: o espectador, protótipo da pessoa passiva, está na onda do criador de moda, ou seja, do autor “do que deve ser feito”. Unem, pois, a fome com a vontade de comer. E, neste caso, muitas vezes paradigmático, o espectador existe, mas a arte não. Uma arte móvel, avançada, discordante e indócil não pode ter espectadores, e esses, ou se convertem em criadores revolucionários pelo que veem, ou se afastam para outros campos mais cômodos, onde sua inclinação não passe disso: inclinação, mas não ação.

Nesse ponto, quero fazer um alerta sobre a sensação comum de que as pessoas não vão às galerias ou não compram obras de artistas. Se isso for verdade, só revela o servilismo do espectador, que não assiste mais do que lhe é suficientemente imposto. A maior ou a menor distância entre uma obra de arte e outra, inclusive entre um espaço expositivo e outro, e a presença de espectadores não tem relação alguma com o estilo ou a compreensividade do trabalho exposto, do mesmo modo que a venda de arte não tem relação direta com a sua acessibilidade.

O espectador, no geral, não elege o que quer ver. Entretanto, se é um espectador comum, o que ele faz é escolher entre “o que deve ver”. Mas só isso. Afinal, o espectador está ciente de que sua categoria não existe no mundo real da arte, já que a resposta a essa questão o levaria a desaparecer.

A contemplação, em si mesma, é fomentada ou abrandada não pelo caráter da arte do momento nem pelo estímulo criativo, senão por uma conveniência social difusa e alheia. Não há espectadores natos, senão vítimas facilitadoras da circunstância cultural.

1 Disponível em https://notocarporfavor.wordpress.com/2012/02/06/el-espectador-suspenso-de-isidoro-valcarcel-medina/ Acesso em 22 ago. 2020. Versão para o Português de Carmen Lúcia Capra.

2 Na definição: s. f. || (filos. de Aristóteles) a essência da alma. || (Chul.) Enigma, palavra ou frase difícil de entender; palavreado, endrômidas. F. lat. Entelechia. http://www.aulete.com.br/entel%C3%A9quia . Na etimologia: Do Grego ENTELEKHEIA, formada por EN, “em,  dentro”, mais TELOS, “objetivo, finalidade”, mais EKHEIN, “ter”. https://origemdapalavra.com.br/palavras/entelequia/

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